momento

“há aquele momento em que escrevemos aos outros. Quando os vemos quase a nu, é como se nos víssemos a nu, ou entrevemos nas suas expressões, corporais ou não, por contraposição ao que nós próprios sentimos e escondemos, ou não somos capazes de dizer, por vergonha ou mesmo medo, entrevemos, dizia, o que escondemos, por vezes, de nós mesmo, ou melhor, até temos vergonha de o dizer, ou pensar, imaginar até.” – dizia-lhe, acabando com um gole de cerveja, observando a reação dele. – “porque não escreve sobre isso?” – perguntou – “Não tenho tempo!” – silêncio – “Talvez seja esse um dos objetivos da escrita: escrever o que, por vergonha, preconceito, se não pode dizer.” – Silêncio – “Bom…se não tens agora, não é depois que vais ter; lá em baixo faz muito escuro.” – rematou.

Paralympics

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morre-se todos os dias, vive-se entre os despojos de guerra

Haverá outros lugares emocionais que nos dão alegria e que nos parecem termos sido felizes, ou estarmos a fazer bem: quer dizer, os outros gostam de nós e do que fazemos. Entre o que os outros acham e a qualidade do que fazemos pode haver uma enorme diferença, sendo que a ideia da “sabedoria da multidão”, essa avaliação última, nos derrota sempre: quem és para pôr em causa essa última voz. Tem sido sempre assim, apesar do esforço, há essa arrasto, essa réstea de insatisfação dos outros pelo que és. Apesar das boas intenções e da suprema, entre as melhores, vontade. Certo, certo é que a vida escorre assim e não de outra maneira. Volta e meia andas entre os corpos, vozes e restos do que és e do que te aconteceu. Lamentas. “Lamentarias” é a gasolina da vida e se estás só é porque estás vivo. Habitua-te! E lá seguimos em frente, que não é assim tão positivo, é mais para o inevitável porque isto roda, não pára nunca, e segues mesmo com essas ruínas no teu passado, que te tiram o sono e te fazem escrever isto. Habitua-te. Sim, já estou habituado, mas se a vida vai sendo cada vez mais despojos e se as forças diminuem, não há como limpar este esterco todo. deixa ficar. Passa ao lado, lamenta, segue. Olha para o lado positivo da vida. Bem sei. Mas este lado, esta inundação sufocante, negra, quase bréu, vai como um rio subterrâneo. Habitua-te.

comum5

ruí

Ruí as unhas. No passado, todos os dias. Hoje de duas  a quatro vezes ao ano. Há medida que cresci vai-se sendo mais comedido. Era mesmo para guardar segredo. Nunca falei disto a ninguém. Nem aos íntimos que já não estão nem à família que vai encurtando. E não sei porquê. No principio ficava com os dedos desalinhados e agora também, antes era a tempo inteiro, agora não percebo porque é que o faço, ficam estes dedos com as unhas em socalcos, desentendidas, porque é que o fizeste? Começasse e pronto.

quem somos

isto é um fluxo de vida, um chegar permanente, minuto a minuto, a um presente que pode ser um mescla de situações. Se olhasse para ti veria uma mescla de outras vidas e tu és essa mescla, tu és fatias de outros que também são fatias, ou melhor, conjunto de fatias que também são tuas. Isto porque vivemos todos mais ou menos as mesmas situações, mas em tempo diferentes e passamos por lugares diferentes, experiências diferentes. Tu significa que tens um conjunto de fatias de vida diferente de outros. Mais um pouco à frente, tu és a tua rede neuronal, um conjunto de conexões neuronais que te fazem tu mas que outros também viveram, em contextos diferentes, em tempos diferentes, a ritmos diferentes. O que faz de nós o outro é a interceção, há fatias que são comuns, outras não, serão comuns a outros. A impressão do outro são essas fatias que reconhecemos como sendo nossas. Se são muitas coincidências há empatia. Se são muito diferentes receamos. A empatia vai de se saber que o outro sou eu, em fatias diferentes.

velocidade

a facilidade torna a vida veloz e menos sumarenta

nadaJan2015

essaoutra mão

Houve uma mão que segurou essaoutra mão, mais pequena, que segurava essaoutra mão maior. Se passeavam ou não, se iam ou vinham de casa, certo é que caminhavam juntos, à velocidade um do outro, com a alegria de quem fala de si para si. Se foi breve ou não, não se sabe, sabemos sim que naquele instante, uns minutos para trás outros para a frente, era de alegria que levavam, de estar juntos, de falar juntos, do que fizeram ou do que fariam. Não sabiam era que muito tempo depois estariam separados, mesmo que se falassem, mesmo que se escutassem, veio uma nódoa que não era de outrem, mas da responsabilidade de um e outro, e que os separou. Falou-se disso. Mas eles não. Entre eles só conversa fiada. Disse outro, com mais tempo na pele, que isso vai mesmo assim, igual a tantas outras mãos, aqui e noutros lugares, com estas e outras pessoas. Segue-se de felicidade em felicidade, passando pela infelicidade de não se segurar essa mão nunca mais, e não é porque esteja longe é só porque o amor desapareceu como areia entre os dedos. E que irás fazer? Deixa-me chorar, mesmo que nenhuma lágrima caia.

Franz E., dezembro 2016

doente

Disse ele – “é isso. estou doente. nem falo das dores de fora. é mais as de dentro. disrupções éticas. lamentações teóricas. fodelhisses miseráveis. nadisses sem jeito nenhum. que interessa. a mim vem de dentro e descaca o ovo, fico em carne viva”

Do outro lado da secretária, via-lhe a careca seca, baloiçando à vez, daqui para ali, e o som de um lápis que escrevia, ou desenhava, ou rabiscava desinteressado. E falou -“Você tem uma doença mortal, chama-se Vida, e o sintoma é estar vivo, quer dizer, fala merda, diz baboseiras, grita injúrias, berra contra a fome com a barriga cheia, é político de sofá, defende o ambiente com as mãos no volante, é contra a guerra mas não quer refugiados no quintal, e de facto, raramente tem razão.”

Levantou-se. Viu-lhe as barbas e saiu. Mesmo sem pagar. Não disse nada. O outro ficou-se na secretária, surpreendido. Ele também tinha essa doença.

coração está lá

Disseste tu mas não pensei eu -”fiz a minha vida aqui mas o meu coração está lá”- nem pensei e não sabia, que se podia viver estando o coração morto. Mas é assim. Andamos todos assim. Ou somos todos assim. Ou é mesmo assim, gerações atrás de gerações. O coração bate e trabalhamos para comer e sobretudo para dar de comer. A vida passou, como passou por outros, um arzinho leve e suave como seda, e já nada é nada quando amolecemos, com o coração sem vida. E lá vem um momento, se chegas a casa ou se abraças outra vida, se ficas para falar de coisa nenhuma, com um valente sorriso por dentro, uma gargalhada por fora, e vives. Ou se vem um resto de tarde fresco, ou se te sentaste numa madrugada limpa, junto ao mar ou a ouvir a passarada. E vives. E se caminhas vives -“Ainda bem que vivo.” -Dizes tu mas não ouvi eu. É disto que falo quando falamos de vida. E se tu sabes eu também pensei e se tu não dizes eu também não. Escrevo para te dizer, estando sozinhos não estamos, somos todos do mesmo barco, e passamos todos por tudo ou quase tudo, desde a felicidade à ternura, da miséria à tristeza.

quatro mãos

Uma caixa é transportada, pouco antes de ser enterrada, são quatro os homens e quatro as mãos, um apressa-se a enterrá-la, ou melhor a enterrá-lo, o corpo, é um dos genros mais aziagos que nunca suportou o sogro, o outro não sabe ao que vai, é aguenta-te, é pau para toda a obra, sempre tudo ok, onde quer que esteja. O terceiro é neto e leva o corpo com o coração. Debatendo-se com o genro apressado, empurra e puxa para lá -“Vai lá com calma, o corpo já está frio”- A outra é uma mão impossível, não está lá. Vai substituída por uma estrangeira, havia de estar a do filho, ficou para trás, muito antes da morte deste pai, que vai agora a enterrar. Sem afecto, foi criado por este pai austero, de poucas palavras que nunca perguntou ao filho “como estás?”. Foi sempre, faz isto! Faz isto! Faz aquilo! São quatro as mãos e é um pai só, calado sempre, sorriso nunca, austero como sabia que a vida é, um inferno e uma ilusão, sempre.