artista por 10 minutos

Deram-me uma flor. Nem sei se homem ou mulher. Não interessa. Deram, porque mereci. Não que neste planeta sejam apenas guerras, não que neste planeta sejam apenas histórias felizes ou de moralidade elevada, nem de dignidade ou de tolerâncias extremas. Nem uma nem outra, mas mais a última que a desgraça da primeira. Somos um bando de pássaros assustados há procura de um lugar seguro, na esperança, bem perto do fim do dia, de sossegarmos no peito de alguém. Deram-me uma flor. Ainda bem. Vou deitar-me sossegado, este mundo ainda vai bem.

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coração está lá

Disseste tu mas não pensei eu -”fiz a minha vida aqui mas o meu coração está lá”- nem pensei e não sabia, que se podia viver estando o coração morto. Mas é assim. Andamos todos assim. Ou somos todos assim. Ou é mesmo assim, gerações atrás de gerações. O coração bate e trabalhamos para comer e sobretudo para dar de comer. A vida passou, como passou por outros, um arzinho leve e suave como seda, e já nada é nada quando amolecemos, com o coração sem vida. E lá vem um momento, se chegas a casa ou se abraças outra vida, se ficas para falar de coisa nenhuma, com um valente sorriso por dentro, uma gargalhada por fora, e vives. Ou se vem um resto de tarde fresco, ou se te sentaste numa madrugada limpa, junto ao mar ou a ouvir a passarada. E vives. E se caminhas vives -“Ainda bem que vivo.” -Dizes tu mas não ouvi eu. É disto que falo quando falamos de vida. E se tu sabes eu também pensei e se tu não dizes eu também não. Escrevo para te dizer, estando sozinhos não estamos, somos todos do mesmo barco, e passamos todos por tudo ou quase tudo, desde a felicidade à ternura, da miséria à tristeza.

porque queres construir o paraíso

e isso com uma questão, porque queres construir o paraíso? Porque todos os dias vives o inferno.

E pode ser um infernozinho, como a vida ocidental, uns apitos e uns acenos, o patrão irrascível e que ninguém sabe o que quer, ou os incêndios, e mesmo a guerra, essa intolerância que já se ultrapassou para entrar numa espiral que não regressa, a não ser que todos estejam exaustos.

É por isso que queres construir o paraíso, quando compras uma casa onde lhe pões flores e animais ou quando fumas umas ganzas e vais para a festa ou mesmo quando compras um automóvel, ou outra coisa qualquer, isso faz-te sentir grande, importante, no teu paraisosinho. Vamos de ilusão em ilusão até esbarramos na realidade, isto é o inferno, isto que vivemos, até custa dizer.

ouvi porque tinha ouvidos de ouvir

Contou-me e eu escrevo a impressão que me deixou. Não são as suas palavras letra a letra, são as texturas e as melodias do seu tempo próprio.

Vivo com a mesma ânsia de ser acossado por perjúrio: que desconhece que o fez por não saber que o que fizera, que construíra afinal um juramento falso: fora falso consigo e com Maria. A mulher dele também se chamava assim. Para um homem de 28 anos, casar-se pode ser um acto falso. Não porque as suas intenções sejam a de causar dor, apenas porque não lhe é possível melhor com esta tenra idade. Um juramento nas estacas do impossível, realizado em ilusão idealista não sabendo que não é possível. E não é.

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o que andas tu a fazer

– “O rapaz não é daqui, pois não?” -perguntou

– “Não…”- Balbuciei embaraçado.

– “Sente-se à minha mesa … ao menos tenho companhia”- continuou. Se calhar não tinha percebido que o teria estado a observar. Aquele homem sentia-se só entre os homens, menosprezado, caminha só.

– “Não quero incomodá-lo.” – Disse, tentando demonstrar respeito;

– “O rapaz incomoda-me é ai estacado, sozinho; chegue-se … vá não seja tímido.” – queria falar – “ Não tenha medo, que medo tenho eu que a mim me façam mal.”

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afeto

no passado também havia políticos corruptos, roubos, falta de respeito, assassínios, estrelas viciadas e má educação. Hoje, o mesmo, mas bem mais visível: as audiências constroem-se com isso e os jornais vendem por causa disso. É um negócio. O afeto não existe.

A marginalidade, essa tem referências, tem valores, tem cultura e hábitos endémicos: por exemplo, um rapaz que não dorme em casa se não entregar 50 euros ao pai. Uma criança com 13 anos que tem de cuidar dos irmãos porque a mãe sai à segunda e volta na sexta. Casas em que ninguém sabe a que horas se come e quem come, e quem faz a comida. Casas em que o jantar é acompanhado pela televisão. Casas em que o silêncio invadiu a família, apenas se ouve o tilintar dos talheres e o som mudo das notícias, invariavelmente as mesmas. E aqui o afeto não dorme. Continue reading “afeto”

eufemismo

…então vivemos em eufemismo, tão envergonhado, que ninguém diz o que se passa por inteiro, mas aos bocejos. E só mesmo depois de a água nos ultrapassar os joelhos, lá vem alguém dizer: é a crise pá!

Quando se dizia, o país está de tanga, somos os melhores alunos da europa, ou mesmo, isto é o paraíso. Resta saber onde acaba o eufemismo e começa a nossa carteira, onde acaba a ganância e começamos a viver com a realidade, onde acabo eu e começa o outro, e se eu maior sou o outro pior fica.

O Visitante

 

 

um filme muito simples, sem mostrar mais do que é, numa história simples. Não é muito bom, mas é bem melhor que muitos que para ai se põem em bicos de pés e no fim são tretas. Uma minúscula parte da vida de todos nós. Altruísmo e amizade. A vida não se faz apenas de miséria e egoísmo.

abraço

“hey, parra” – a voz sossegada e a expressão familiar, emergem no ruído da cidade como placas de madeira afundadas, pelo meio das pessoas, e tudo se silencia de repente, como se em pleno dia tudo se apaga-se, tudo escurecesse e ficasse o espanto. Inacreditável. Poderá ser. Vinte anos depois. Uma memória que nos fugiu das mãos começa a salpicar de imagens. Vira-se sem querer, ligeiramente arqueado, com um sorriso quase desenhado, uma ânsia breve de confirmar. Procura a direcção da voz inquieto, e sem acreditar. “Sou eu rapaz. Sou eu. Há quanto tempo? Está tudo bem?” O nervosismo toma conta de um abraço jamais pensado.
“eh eheh, há quanto tempo?” – responde ao mesmo tempo que o abraço fraterno se mantém aceso. Ficaram abraçados enquanto as lágrimas cresciam seguras ao sofrimento que tinham passado e por todos os que tombaram ao mesmo tempo. Trocaram palavras. Olhares. Sorrisos. Gargalhadas que já não sentia serem possíveis neste lugar-tempo. Continuava sisudo e ele alegre como se todo este tempo tivesse sido inútil. Trocaram contactos e largaram-se do passado inquieto. Já ninguém me chama assim. É este o último. Foi andando a magicar nas memórias que este camarada lhe recordava e ficou entre a alegria e a miséria: uma amizade não se perde com o tempo, mesmo se esse tempo for miserável, e se as recordações forem de desgraça.

não me deixes morrer

Já moribundo. Senti-a-o. O meu pai… há muito… é verdade. Vinha perdendo, pouco a pouco, a consciência de onde estava e ao que vinha – “Ai a minha cabeça. Ajuda-me lá. O que é que eu queria?” – Olhou-me em silêncio. -“Hã, era isso mesmo… a velhice é uma porra.” Até que um dia não foi visitar as terras – “Eh pá, não consegui levantar-me. Dores por todo o lado. Isto, só melhora com o pó da terra.” – Gracejava. Não digas isso pai, pensei eu, as tuas palavras são mais certeiras e cruéis do que te ver assim. Não se levantou nesse dia e nos dias seguintes. Acamou, dizia-se assim. E o que se faz quando é assim? Pouco. Muito pouco do que queríamos não perder. Quase oitenta anos. Uma vida cheia. Fez de tudo. “Vi tudo. Andei pelo mundo. Não desejo mais, nem conhecer mais. Está visto o que isto é. “Foi cozinheiro e amante, marinheiro e pai, vendedor e agricultor e marido desejado, andou pelos quatro cantos deste planeta. Morreu-me, agarrado a mim com quantas forças tinha, num abraço aflito, com a cabeça encaixada no meu pescoço, e os dedos cravados na minha roupa, até que amoleceu como flor murcha. O silêncio inundou e só me ouvi tremer, não fui capaz de lhe dizer nada, a não ser secar-lhe a lágrima que ele não viu escorrer, e ouvir essas últimas palavras quarto fora ao sabor do vento que rasgava a chuva contra o vidro – “Não me deixes morrer”.