Categoria: Poesia
poesia
mãe
Não te vi morrer,
veio um homem fardado
sussurar o que eu não queria ouvir
não te vi morrer, não estava
nem para te proteger
nem para te segurar a cabeça
nem para te apertar
Continue reading “mãe”mar
se te fizesses à água e se mergulhasses nesse sonho
serias veludo sob seda,
arrepio sob algodão,
ou dedos de mar à tua volta,
tateado, à tua procura
enquanto esse sorriso te aconchega até te sussurar ao ouvido,
não te esqueças de ti
Franz E., julho 2020
sorte
que sorte, temos a morte
o que seria viver por aqui eternamente
vendo tudo igual, como há 500 anos atrás
ou mais longe
até os gregos nos dizem o mesmo, seja na literatura ou noutra expressão qualquer
que sorte, temos a morte
estreito
todos os dias, a vida curta,
estreita, sempre um pouco mais
bem caminhas em revoltas cadas vez mais curtas
o abismo por diante, por de lado, por de cima
e mais uma volta, não vás cair
essa caixa de vida estreita que desconhecias tão estreita
que vais a seguir empurrado como um animal
estreito e estreito, de volta breu
do outro lado breu
por todos os lados uma ausência negra
empurrado, não vais sorrir, nem ser feliz
quererias pegar no telefone e falar, não está ninguém
nem nesse número nem no outro, nem hoje nem amanhã
esse número está só na tua agenda e não o vais apagar
querias ouvir uma voz simples, doce, sincera
nem nesse número nem na morada dela
quando terá sido a última vez que lhe disseste alguma coisa,
que a viste, ou que foste a casa dela
não não, se pensas em falar com quem dizer o que te vai por dentro
ninguém, só sorrisos que te vão gozar amanhã, num comentário qualquer
e mais estreito
vives, mais vale só com o mar do que com este breu imenso
mais vale esse animal de companhia que a companhia com quem não posso dizer nada de dentro
dela só as coisas que deixou e o que disse sem querer dizer nada
todos os que te ouviam dizer-te, morreram
o que farás agora?
Franz E., abril 2018
nua
gostava de te ver nua
puxar-te os cabelos com ganas
rodear-te os mamilos com a língua
seguir o teu corpo balonçando
pintar cada cêntimetro dele com os dedos
antes, perco-me no teu decote
imagino o que vai por dentro dessa roupa seminua
agora,
esvazio-me de alegria ouvindo-te
adormeço com a empatia entre nós
sossego no quentinho do teu corpo
Franz E., abril 2018
O primeiro Holocausto
Durou vários anos, antes e depois da I Guerra Mundial, e matou quase 1,5 milhões de arménios. A prova podes buscá-la com as mãos. No monte de Margana, nas águas do Habur. As pessoas atadas, desnutridas, famintas, cansadas e nuas eram colocadas num monte acima do rio. Dava-se um tiro numa e o corpo inerte arrastava as outras.
“Quando afastei com os dedos a terra do outro lado da ravina, apareceu um esqueleto inteiro”. Isabell Ellsen, fotógrafa do The Independent, descobriu a prova terrível, passou a mão pela “terra castanha e ficou a olhar para um crânio.”
caos
se estás com as balas à distância
como podes falar disso
se vives sem os escombros na pele
como podes falar disso
e se por lá estivesses
se por lá vivesses
como falarias então
que mais acrescentarias
voariam mais pedras,
gemeriam mais ainda
cairiam do céu, pernas, braços e almas
haveria mais corpos para transportar
mais restos para abandonar
e o que transportariam senão corpos, por vezes nús, bem certo
e os lamentos, as melodias, quais seriam, haveria?
não sabemos que significa guerra, não nos diz nada, não ilumina nada,não se pensa em nada, só suposições que vêem de longe de muito longe, não tem significado, não te causa vertigens, daquelas que surgem automáticas, já lá estive, nem te quebra o corpo, nem te vaza a vista, nem te vaza a vista, nem sentes a faca afiada a cortar a pele, e depois a carne, e depois o pulmão e por fim o coração, o cheiro a carne pobre, a sangue morto. Sabes o que é a guerra, não sabes, alguns de nós pelos menos, o que significa.
Há quem saiba o que significa a guerra. Têm cabelos brancos e estão esquecidos neste país. às vezes ouvem-se, mas não se escutam.
sei só de paz e que de paz estão sempre à procura como pão seco de água precisa, toda a gente deste planeta
Franz E., novembro 2016
a propósito do espetáculo da Olga Roriz, Antes que matem os elefantes
agora
é uma vida inteira à procura
de outra pessoa maior do que tu
que acreditas escondida em ti
amanhã farás melhor
amanhã farás o que não fizeste
amanhã terás todos os olhos em ti
amanhã serás maior que a estrela maior
e amanhã já se passou tempo de ser
de aceitar isso que se é
o que és agora mesmo
agorinha
aqui mesmo
com os pés descalços sobre a areia que não é tua
mas sim, amanhã receberás um prémio por seres o que não és ou não consegues, ou não queres ser
amanhã ou daqui a dez anos
o que te garanto é que o que és, és agora.