e por vezes – David Mourão Ferreira

mãe

Não te vi morrer,

veio um homem fardado

sussurar o que eu não queria ouvir

não te vi morrer, não estava

nem para te proteger

nem para te segurar a cabeça

nem para te apertar

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mar

se te fizesses à água e se mergulhasses nesse sonho

serias veludo sob seda,

arrepio sob algodão,

ou dedos de mar à tua volta,

tateado, à tua procura

enquanto esse sorriso te aconchega até te sussurar ao ouvido,

não te esqueças de ti

Franz E., julho 2020

sorte

que sorte, temos a morte

o que seria viver por aqui eternamente

vendo tudo igual, como há 500 anos atrás

ou mais longe

até os gregos nos dizem o mesmo, seja na literatura ou noutra expressão qualquer

que sorte, temos a morte

estreito

todos os dias, a vida curta,

estreita, sempre um pouco mais

bem caminhas em revoltas cadas vez mais curtas

o abismo por diante, por de lado, por de cima

e mais uma volta, não vás cair

essa caixa de vida estreita que desconhecias tão estreita

que vais a seguir empurrado como um animal

estreito e estreito, de volta breu

do outro lado breu

por todos os lados uma ausência negra

empurrado, não vais sorrir, nem ser feliz

 

quererias pegar no telefone e falar, não está ninguém

nem nesse número nem no outro, nem hoje nem amanhã

esse número está só na tua agenda e não o vais apagar

querias ouvir uma voz simples, doce, sincera

nem nesse número nem na morada dela

quando terá sido a última vez que lhe disseste alguma coisa,

que a viste, ou que foste a casa dela

não não, se pensas em falar com quem dizer o que te vai por dentro

ninguém, só sorrisos que te vão gozar amanhã, num comentário qualquer

e mais estreito

vives, mais vale só com o mar do que com este breu imenso

mais vale esse animal de companhia que a companhia com quem não posso dizer nada de dentro

dela só as coisas que deixou e o que disse sem querer dizer nada

todos os que te ouviam dizer-te, morreram

o que farás agora?

Franz E., abril 2018

nua

gostava de te ver nua

puxar-te os cabelos com ganas

rodear-te os mamilos com  a língua

seguir o teu corpo balonçando

pintar cada cêntimetro dele com os dedos

antes, perco-me no teu decote

imagino o que vai por dentro dessa roupa seminua

agora,

esvazio-me de alegria ouvindo-te

adormeço com a empatia entre nós

sossego no quentinho do teu corpo

Franz E., abril 2018

 

O primeiro Holocausto

Durou vários anos, antes e depois da I Guerra Mundial, e matou quase 1,5 milhões de arménios. A prova podes buscá-la com as mãos. No monte de Margana, nas águas do Habur. As pessoas atadas, desnutridas, famintas, cansadas e nuas eram colocadas num monte acima do rio. Dava-se um tiro numa e o corpo inerte arrastava as outras.

“Quando afastei com os dedos a terra do outro lado da ravina, apareceu um esqueleto inteiro”. Isabell Ellsen, fotógrafa do The Independent, descobriu a prova terrível, passou a mão pela “terra castanha e ficou a olhar para um crânio.”

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caos

se estás com as balas à distância

como podes falar disso

se vives sem os escombros na pele

como podes falar disso

e se por lá estivesses

se por lá vivesses

como falarias então

que mais acrescentarias

voariam mais pedras,

gemeriam mais ainda

cairiam do céu, pernas, braços e almas

haveria mais corpos para transportar

mais restos para abandonar

e o que transportariam senão corpos, por vezes nús, bem certo

e os lamentos, as melodias, quais seriam, haveria?

não sabemos que significa guerra, não nos diz nada, não ilumina nada,não se pensa em nada, só suposições que vêem de longe de muito longe, não tem significado, não te causa vertigens, daquelas que surgem automáticas, já lá estive, nem te quebra o corpo, nem te vaza a vista, nem te vaza a vista, nem sentes a faca afiada a cortar a pele, e depois a carne, e depois o pulmão e por fim o coração, o cheiro a carne pobre, a sangue morto. Sabes o que é a guerra, não sabes, alguns de nós pelos menos, o que significa.

Há quem saiba o que significa a guerra. Têm cabelos brancos e estão esquecidos neste país. às vezes ouvem-se, mas não se escutam.

sei só de paz e que de paz estão sempre à procura como pão seco de água precisa, toda a gente deste planeta

Franz E., novembro 2016

a propósito do espetáculo da Olga Roriz, Antes que matem os elefantes

agora

é uma vida inteira à procura

de outra pessoa maior do que tu

que acreditas escondida em ti

amanhã farás melhor

amanhã farás o que não fizeste

amanhã terás todos os olhos em ti

amanhã serás maior que a estrela maior

e amanhã já se passou tempo de ser

de aceitar isso que se é

o que és agora mesmo

agorinha

aqui mesmo

com os pés descalços sobre a areia que não é tua

mas sim, amanhã receberás um prémio por seres o que não és ou não consegues, ou não queres ser

amanhã ou daqui a dez anos

o que te garanto é que o que és, és agora.