Bem verdade. Roubei. Não preciso mentir sobre isso. Não quero. Foi o que decidi. Se tens fome, rouba, pensei. Se não podes, rouba. Que mal tem? No fim do mês vais juntando. E quando o tiveres todo, então pagas. Até já trabalhas. Ao fim de algum tempo terás o suficiente para saldar.
Também não era de fome que padecia. Dirão vocês que não tenho argumentos para o efeito. Pois, não conhecem a minha história. Já esbanjei dinheiro. Já tive família. Já conheci a fama. Já vi o inferno também. Sou já homem para compreender o significado da lei e da honra, da dignidade e da realidade.
Se não era fome, então para quê roubar? Ela queria uma mala. Escolhi a mais barata, a que estava mais a jeito de levar. Não podia, de modo nenhum, deixar de oferecer uma mala, a quem me acolhera com o coração, sem perguntar de onde vinha, ou quem era, ou ao que vinha. Não suportava a tristeza de quem se sentara comigo nas escadas, ouvindo e falando, enquanto a avó me trazia pão e sopa. Não suportava ver triste quem me dera uma vida por inteiro.
Como não podia? Mesmo que isso fosse deitar a honra e a dignidade porta fora. Como não podia sacrificar-me por isso? Ir a casa e vê-la com os olhos adormecidos: os livros aconchegados aos cadernos, as canetas e a lapiseira, tudo numa sacola cozida à mão, em cima do banco, na cozinha, tudo pronto à espera do dia.
Que mal faz isso, levar uma sacola no primeiro dia? Eu sei disso, ela nem esperava outra coisa, aceitara-o com o mesmo coração que me sorrira. Mesmo assim decidi roubar. Ou melhor, roubar para pagar depois.
Nesse mesmo momento, em que amarfanhei o plástico que envolvia a sacola com os meus próprios dedos, sabia que entraria ali para pagar. Mas ela começava a escola no dia seguinte, deixei que os dias se esgotassem, para me empurrar a fazê-lo. A vergonha encheu-me, os olhares dos outros invadiam-me. Num soslaio comprometedor, ao mesmo tempo que apertava a sacola debaixo do braço, fixei um homem que descia a rua. Trocámos olhares, pareceu perceber o que se passava. Encolhi-me em mim, e segui esquecendo que marchava a passo largo, rua abaixo. Virei uma esquina, e outra, e outra, outra ainda, e parei ofegante, ergui o braço e, para espanto meu, lá estava a mala, envolta num plástico poeirento, esmagada pela minha mão.
Espreitei atrás da esquina e não vi ninguém. Ou ando agora a ser perseguido, ou ele fingiu que não viu. Continuei arquejante ao mesmo tempo que a felicidade me alagava. Poderia agora retribuir a alguém que não me pedira nada em troca.