O meu gato não é meu. Não sei de quem é. Nem a quem pertence. O mais provável é não pertencer a ninguém. Já sabemos o que os gatos sabem sobre independência. Nome tem diversos. Um dia apareceu. Atreveu-se e entrou pela cozinha, pela janela, seguro de si, à procura de comida, um lugar quente, um colo sossegado e festas. Muitas festas. Nota: “pela janela” é surpreendente porque vivemos num primeiro andar.
É um gato partilhado. O vizinho trouxe-o. Alguém o tinha deixado junto ao caixote do lixo, com todos os utensílios para que um gato seja bem tratado. Apesar da boa vontade, a família que o abandonou, não tinha o utensílio principal: paciência para se adaptar a um gato tão “estranho”. Chamo-lhe estranho, porque quando se zanga, vira-nos as costas; fica quieto no veterinário, sem tugir nem mugir, à espera que a transfusão de sangue para outros gatos seja concluída, e quando alguém adoece, deita-se aos pés da cama, sem sair para comer nem sequer para se espreguiçar.
E quando o deixamos deitar-se na nossa cama. Isso é o paraíso. Estica-se a ronronar como uma panela de pressão, à procura da festa, fecha os olhos e enrola-se.
Nem tudo são rosas. O pior, o que nunca pensei fazer a um gato, é abrir os peixes para que ele os coma, ou dar-lhe carne na boca. Sim, é verdade. E sim, também é verdade: o mais difícil é a queda de pêlo, acentuada a partir da Primavera. Apesar disso, conquistou-nos. Para além de nós, conquistou o resto da família e amigos: não há quem não pergunte pelo gato ou lhe traga uns restinhos – “É para o bichano.”
Tem cerca de seis anos e brinca à nossa frente, ora arqueando-se em jeito de ataque ora correndo como um doido pela casa, subindo as escadas, escondendo-se à espera das nossas pernas. Não é raro morder-nos ou atirar-se, abraçando o que apanha, as costas, ou mesmo as pernas. Arranha o que lhe aparece pela frente, e dorme como se não houvesse amanhã. E sempre que regressa enche a casa de miados gigantescos, de quem está aflito para sempre. Se estamos aqui, ele também está, se mudamos de divisão ele também muda. Se ele não está, ficamos aflitos: voltará?
Adora caixas de madeira: não vale a pena comprar caminhas para gato. Um bom caixote, que lhe sirva, é suficiente. E gosta mais ainda do colo. Açambarca-o, estejamos a trabalhar ou não, e quando se enrola como quer, estica as pernas da frente até quase nos apanhar o pescoço. Abre as unhas e puxa-nos: quer uma festa demorada. E aí, começa a ronronar e a fazer os gemidos de quem está satisfeito.
Outras tantas vezes fica suspenso na janela, observando os seus 200 m2 de quintal por onde vive, onde se aquece ao Sol, onde encontra outros gatos e alguns pássaros. Onde come erva.
Um dia vamos perdê-lo. Será difícil, mas enquanto estiver connosco, que seja feliz.
Bom este gato vive connosco, por isso é o gato mais bonito. Mas outras histórias existem, mais ou menos rebuscadas do que esta, mais ou menos “estranhas”. Por isso, para além do que é ter um gato, o mais importante é que isto que se escreve é autêntico. E a autenticidade é ser-se humano. Ao contrário de quando navegamos num centro comercial, onde quase tudo é falso. Ao contrário de quando ambicionamos um telemóvel ou um automóvel, ou uma casa, ou umas férias na ilha mais bem fotografada que encontramos: isso são coisas, umas atrás das outras, aos montes, e nunca nos sentimos cheios para além das primeiras horas em que usamos essa coisa. Há espectáculos que ainda hoje nos fazem sentir bem, e aconteceram há tanto tempo; há momentos que estivemos com outros que nos fazem viver, há ajudas que concluímos que ainda hoje nos fazem sentir pessoas. Não estivemos errados.
Ao contrário do que fazemos hoje, as expectativas do meu gato são 200 m2, enquanto que as nossas parecem nunca estar ultrapassadas.
O desejo para 2012, para além de cuidarmos de nós, da nossa Terra, é que sejamos humanos, ou seja, autênticos e que as nossas expectativas sejam baixas, assim não perdermos o sentido da realidade e do que é importante. E tudo isso para não perdermos a Terra debaixo dos pés.