não me deixes morrer


Já moribundo. Senti-a-o. O meu pai… há muito… é verdade. Vinha perdendo, pouco a pouco, a consciência de onde estava e ao que vinha – “Ai a minha cabeça. Ajuda-me lá. O que é que eu queria?” – Olhou-me em silêncio. -“Hã, era isso mesmo… a velhice é uma porra.” Até que um dia não foi visitar as terras – “Eh pá, não consegui levantar-me. Dores por todo o lado. Isto, só melhora com o pó da terra.” – Gracejava. Não digas isso pai, pensei eu, as tuas palavras são mais certeiras e cruéis do que te ver assim. Não se levantou nesse dia e nos dias seguintes. Acamou, dizia-se assim. E o que se faz quando é assim? Pouco. Muito pouco do que queríamos não perder. Quase oitenta anos. Uma vida cheia. Fez de tudo. “Vi tudo. Andei pelo mundo. Não desejo mais, nem conhecer mais. Está visto o que isto é. “Foi cozinheiro e amante, marinheiro e pai, vendedor e agricultor e marido desejado, andou pelos quatro cantos deste planeta. Morreu-me, agarrado a mim com quantas forças tinha, num abraço aflito, com a cabeça encaixada no meu pescoço, e os dedos cravados na minha roupa, até que amoleceu como flor murcha. O silêncio inundou e só me ouvi tremer, não fui capaz de lhe dizer nada, a não ser secar-lhe a lágrima que ele não viu escorrer, e ouvir essas últimas palavras quarto fora ao sabor do vento que rasgava a chuva contra o vidro – “Não me deixes morrer”.

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