José, O Quinas, vivia em Lisboa, junto a um beiral que o abrigasse pela noite, das agruras do maldito tempo. Já sabia. Além disso, tinha consciência do facto: este dia esquecer-se-ia como os outros. Outros tempos, raramente recordados para poupar o seu corpo, e porque a vida que levava não lhe escondia a condição do mais velho pedinte da sua zona. Ainda vivia. Seria essa a maior ambição de quem por ali se espalhava. Outros como ele viviam na rua, da generosidade de uns da grandiloquência de outros, por esta ou aquela razão a rua era um lugar que esperava, o sítio que nunca te recusa. Muitas organizações tomavam conta de nós. Dedicavam-se a estes perdidos. “Para quê? Já estamos mortos!” Mas só os olhos poderiam gritar, não havia corpo com forças para vociferar. “Combater a pobreza”, diziam os responsáveis. Era esse o leitmotiv destas generosas pessoas. Mas como é isso possível se o infortúnio é uma palavra no vocabulário, perdida e repetida no tempo e no espaço. Para mim, era a fome que me levava até eles, vontade não havia nenhuma, e a única pobreza aqui era a do espírito. Era a falta de lucidez. Era a ausência de valores, de limites, de cuidado, de lentidão. Era o não se aceitar a lentidão. Foi o pensar ganancioso, para além dos limites humanos, o aceitar objectivos inacessíveis, capazes de liquidar uma família inteira. Estes discursos, alguns famintos de poder e exibição, rodeados de boa vontade, caiam na altura festiva do Natal, época da ilusão, inundando a noite de guloseimas, roupa e cama quente. Tal como vinha, também desaparecia. O que mais enojava era o alarido da festa, ilusões meus queridos, ilusões. Essas palavras vêm destruídas por dentro, estilhaçam-se nestes dias e nada fica para se aproveitar. Esses sons já se conhecem, destruídos que são na realidade fria de uma anteporta empedrada, ali segura no tempo, onde se enrola um corpo imundo, em roupa suja entranhada pelo frio que não se sente até que o Sol surja no dia tranquilo.
O Quinas era um homem alto, olhar fixo, grande, aquele brilho vencedor nos olhos, cara baça, barba pendente, longa, com grisalhas, suja. Segurava pelas costas um saco roto, negro, manchado, entranhado de nojo, onde guardava os haveres e o seu expositor: uma lata de plástico e um pedaço de cartão escrito, “Necessito de pagar uma desintoxicação, tenho mulher e filhos, por favor ajude-me”, que mais queria dizer, “Ajude-me a continuar como estou”. O nariz pontiagudo emergia da barba emaranhada que se misturava com os maços de cabelo aglomerado, longas tiras de lixo por toda a sua cabeça. Não se lavava à muito. Quatro ou cinco banhos por ano. E quando o fazia era um homem novo. Quase sempre na mudança das estações. Seguia a linha do comboio, perto do rio, até ao balneário público de Alcântara. Davam-lhe roupa. “Era agora que ia mudar de vida”, pensava assim à dez anos. Para ele o mundo acordava todos os dias amargurado. Cansado. Cansado. Cansado. Arreliado consigo próprio, com a sua sorte. Havia pior que ele. O Navalha vagueava pela cidade falando alto, resmungando e gesticulando com a ausência, o vazio. Para quem falaria? E porque o fazia? Ninguém o ouvia mais do que um minuto, e nesse tempo, apenas para perceber ao que vinha aquele homem com o grito por dentro daquela maneira. Só assustava. Enlouquecera com a morte da mulher. Fora pisada debaixo do cartão, por um camião que inesperadamente fazia ali uma manobra. Ninguém percebera que por debaixo da caixa de cartão havia uma casa.
– “Uma esmola, por favor!” – Dizia tantas vezes, a maior parte delas sem o sentir, dessas vezes o corpo não lhe acompanhava o som e o significado, soava tudo a falso. As pessoas, se olhavam, era para se desviarem logo a seguir, intensificando o desmaio, o desprezo. Nestas vezes, esticava o braço para se fazer notar, ou escondia a cara para não se denunciar. Diminuía o insucesso. Tilintava um pouco mais, na caixa suja e rasgada. As técnicas de rua. O corpo quse sempre semi-descaído sobre o lado esquerdo, encostado a um canto de parede que lhe servia de encosto por enquanto. O resto todos sabem, o rosto era o de um homem débil, na idade, na saúde e no alimento.
Tinha horários apesar de tudo. São coisas que se colam na infância e não se esquecem. Hábitos. Alimentava-se pelas 7h na “sopa dos pobres”, visitava o Banco Alimentar pelas 12:30 e despertava todos os dias às 5 horas da manhã, à mesma hora que o reboliço da cidade. O caminho do dia respeitava estes tempos e os locais; nestes intervalos longos poderia andar por ai, mas nestas horas e nestes pontos estava lá, com pontualidade militar. Escolhia as montras, observava quem passava, muitos deles caras conhecidas, repetidas quase todos os dias, estendia o saco e punha-lhe em cima a pequena caixa de esmolas; todos os dias era uma diferente, fazia questão nisso, marketing talvez, ou simples fuga à rotina, ou porque a outra tinha sido esquecida num beiral, ou porque se estragam com facilidade, ou ainda porque se enegreciam facilmente. estas rotinas tendiam a desaparecer. A idade esgotava-as. As pernas arrastavam-se e era cada vez mais difícil sobreviver num tempo que pouco lhe dizia. Começava a cansar-se de viver até. As distâncias aumentavam para aquilo que se passava ao redor. Parecia mais um autista do que alguém que ainda tem esperança. Um mundo melhor eram palavras pequenas, tão ocas, e sem sentido, rapidamente destruídas pelo lugar frio que a cidade lhe dava, uma anteporta empedrada, ou uma calçada bruta, ou um canto bafiento. As palavras fundiam-se com o ruído da cidade, nenhuma de esperança, nem um sorriso, nem uma lamuria sequer, a face fixa, esculpida pelo rancor alimentado pela ausência: não há Sol que chegue para acalentar este frio: mais só não se pode estar.
O Quinas era um homem alto, de olhar vencedor, fixo, ligeiro brilho nos olhos, longa barba pendente, mal tratada, ligeiramente grisalha, suja, o nariz pontiagudo saltava-lhe da cara por entre a barba desordenada. O cabelo escorria em maços, aglomerados, pastosos e gorduroso. Aquele corpo só sentia o banho 4 a 5 vezes por ano, e de cada vez que o fazia sentia renascer como homem novo. Para ele os dias acordavam todos da mesma maneira, amordaçados, amargurados, sós. Esta alma, como todas, é plasticina, moldada por ausências, cansado da vida, arreliado consigo próprio, com o mundo com a sua sorte. Ainda assim, não lhe acontecia como com o navalha. Carregava o mesmo saco negro de sempre, tudo o que tinha cabia nesse saco do lixo. Um expositor e uma caixa de plástico, o escrito pedia a caixa guardava. Nem sei se aquilo que estava escrito no expositor era exactamente o que o Quinas desejava. não sei se a morte ou se mais um dia, aquela pequeníssima esperança, que não foge, se não no último momento. Se alguém o encontrava frio no meio dos cartão, talvez fosse a sua sorte. Não tinha coragem para se ausentar de vez, mas também não se lhe conhecia vontade para continuar. talvez estivesse em gestação, à espera que o cérebro se reorganizasse. Auto-gestão de um homem. Parece que os homens precisam mais disso do que as mulheres, o estar só com as suas asneiras e dúvidas. Por enquanto, deambulava em esperança e ao mesmo tempo em círculo fechado, um dia talvez lhe aprouvesse viver com sentido, sem esta alma moribunda. Verdade se diga, tinha 80 contos consigo, pouco mais do que 4 vezes o ordenado mínimo, à época. Nem sabia como e porque os tinha guardado. Sempre que ia depositar esse dinheiro o gerente, avisado, pedia-lhe que viesse depois do expediente. Nesse dia tomava banho, sentia-se um pouco mais feliz, tinha conseguido alguma coisa mais. Depois disso, com uma regularidade inglesa, seguia a pedir a uma senhora. Fazia-o à uns meses e com cautela na apresentação. (conversa ´ntima com a avó de Mtilde) Apesar da empatia, não tinha coragem para pesar na vida de gente simples que também resistia. Havia a Matilde. Uma pequena, muito pequena, mas muito conversadora. Era neta da senhora e estava a seu cargo. Tornaram-se uma visita regular, cada vez menos espaçada, e sempre que o Quinas resolvia aparecer, antes enfrentava o mesmo dilema: combinar o seu presente com a empatia e a alegria que sentia com aquela companhia. Cada visita era mais apetecida que a anterior, o som da campainha estremecia-lhe cada vez mais a alama: deveria ir, deveria tocar, um miserável como ele, incomodar aquelas gentis almas… Mesmo assim, acabava por tocar, e do outro lado sempre o mesmo sorriso e simpatia: uma sopa quente nas escadas. Nas primeiras vezes, Matilde perguntou-lhe – “Porque estás tão sujo?” – desde então nunca mais foi lá sem roupa limpa, barba feita e corpo lavado. Nessa primeira vez não se atreveu a responder, envergonhado. Como tempo a vida dele tornou-se diferente, lentamente confidenciava com Matilde e com a Avó. Se antes ia lá mês a mês, agora era todas as semanas. “Porque não passas aqui amanhã?” – Matilde foi ter com a avó e fez-lhe o pedido, “Amanhã o Quinas janta connosco avó, pode ser?” Pouco tempo depois, o Quinas já passava por ali meia-hora por dia. Fazia parte da sua rotina. Sentava-se nas escadas que davam para um pequeno pátio escondido do Sol, encimado por um quadrado azul de céu, esquadrado pelo prédios altos e esguios até ao portão da rua, por onde se viam, em pequenos flashs, centenas de automóveis, rua acima rua abaixo, sorvendo o silêncio, interrompido por um estrondoso autocarro. Matilde e a avó começaram a esperar por Quinas, e ele não recusava a simpatia delas: estava agendada. A princípio falavam de bonecas. – “Hoje vens bonito!” – dizia a pequena – e um livro sorriso saia-lhe sem autorização e um olho mais brilhante. Para Matilde o Quinas era um momento diferente de brincadeira. Para a avó, um alívio porque a neta era de uma energia incrível. Sempre aliviava o seu tempo para as tarefas. Na cidade, brinca-se sozinho, as crianças escondem-se entre os prédios, o medo é enorme. A cidade não é segura. – “porque é que tu pedes ás pessoas?” – começava a Matilde – “Preciso de dinheiro para comprar comida. -“Podias trabalhar como o meu avô, mas ele já está no céu” – baixou os olhos – “A minha avó também trabalha.” – Apontou a cara toda na minha direcção, o seu olhar à espera – “Desleixei-me. Não me apetece. Não tenho vontade. É mais fácil pedir.” – esperei eu agora, receoso – “Pois, mas assim tens menos dinheiro. Precisas de trabalhar. Pede à minha avó, ela ajuda-te. Tenho a certeza.” – Terminou, convencida que tudo estava resolvido se a avó tomasse conta do assunto. – “Sabes, tomei coisas para trabalhar mais, antes de pedir nas ruas.” – Interrompeu-me sem querer saber do passado. -” A minha avó comprou-me esta boneca. Só me pode dar agora. – “Que bonita.” – Exclamei eu sem grande interesse. – “Até chora. ” – Continuou ela. Procurou o botão, por detrás da boneca, foi apalpando até que a boneca obedeceu. -“Quinas, a tua sopa, e o pão.” – Interrompeu a avó.
O Quinas tem um passado relativamente brilhante, se excluirmos os últimos vinte anos; como quase todos os pedintes, por diversas razões e em momentos de vida diferentes, foram excluídos; a sua história é semelhante a muitas outras; o veredicto foi e é simples: justamente excluído! Agora já nem sentia a exclusão. Habituara-se. Os humanos são de hábitos. As reacções são enérgicas nos primeiros momentos, mas depois habituamos-nos. Esse hábito, como uma veste, consumira a vergonha ou até a tristeza: vive-se dentro da tristeza como dentro da roupa, não lhe sentimos o peso; agora vivia para além disso, numa profunda depressão: tão funda que nem saberia viver sem ela: não sentia, não via, não falava, só pedia: alisava a folha no chão e prendia-a com a caixa de plástico enegrecida. Bom, neste exacto momento não é exactamente assim, há a Matilde e a avó Natália. Quer dizer que a descrição se reporta aos últimos 20 anos, 240 meses, esquecendo estes meses mais próximos. Terríveis aliás. Fizeram a diferença. Trouxeram-lhe a consciência da tristeza. Adiante. O Quinas tem família normal, ou melhor tinha, tem mas é excluído. Por isso, não tem. A sua infância gargalhou em terras alentejanas, uma aldeia perto de Beja, [???ir a Beja, escrever em Beja, em aldeia ]. Cedo mostrou sentido pragmático. Pouco filosofar. Muito prático, com resposta pronta e decidida, popular, conversa fácil e espírito de liderança. Os colegas admiravam-no. O estranho era a sua vontade de estudar. Os seus colegas não apreciavam nada esse interesse. O seu pai preocupava-se com isso, a mãe desejava que fosse universitário, que tirasse um curso, que deixasse aquela vida do campo, do interior esquecido. Em adolescente, a família decidiu que chegara o tempo de se instalar em Beja, perto da tia, onde teria acesso a outras vidas mais modernas que na aldeia não tinha. Agora quase homem, reconhecida a sua destreza para os estudos, era tempo de apostar. Nada disto o afectou. O estar longe da sua aldeia e sobretudo dos amigos de todos os tempos e para sempre e dos familiares seguros, deu-lhe energia para não desapontar, uma espécie de honra não escrita, assinada num qualquer olhar, ou aperto de mão, ou abraço franco. O pai, um pequeno agricultor, tinha guardado uma terra para uma ocasião deste tipo. na verdade, era a sua reforma e da mulher; pensará vender a propriedade para puder sobreviver aos anos de sentado num banco sombreiro. Em poucas palavras convenceram-se, ele e a mulher, que era o melhor a fazer.
– “Vendo a terra… para o zézinho… quando for a Lisboa, a estudar.” – Experimentou o pai.
– “Falas na da levada junto aos sobreiros do Zé Castor (???), com os pinheiros?” – perguntou – “Sim, esses mesmos.” – E não se falou mais no assunto. Encerrado que estava, poucos palavras serviram e o silêncio selou sem mais discussão.
Depois de feito o negócio, vendida a madeira e o terreno, o pai chamou-o – “Rapaz, chega-te à sala, preciso falar-te.” – Não havia feito nada, pois foi o jovem feliz com a vida para junto do pai. A mãe estava ao lado do pai, a sala parecia maior e só uma luz parecia iluminar-lhe a voz – “Zézinho.” – Que admiração, o pai nunca se virava para ela com aquele nome. Grave seria, pensou. – “Precisamos de conversar contigo.” – Fitou o pai o jovem nada-sabe-da-vida. Aquiesceu o filho e aguardou o recomeço. – “Nada sabes da vida, jovem, é mais amarga do que pensas. Bom, se pensas que é amarga, multiplica por mil para teres uma razoável aproximação ao que te espera. Mas mesmo assim, é muito melhor do que aquilo que eu e a tua mãe temos passado.” – No pensamento dele, passavam as histórias contadas ao fim do dia, no frio do inverno, ao sabor do calor da lareira. Histórias de contrabando, dívidas, fugas e fome. Na verdade aquela solenidade toda não era fora do comum, acontecia sempre, no final do ano lectivo, aquando da apresentação das notas. O pai perguntava apenas, passaste ou trazes uma raposa escondida no fundo das calças? Eu ria por dentro, a bom rir, ele dizia-o com o sotaque alentejano… mas eu esforçava-me por não rir. Uma ocasião, uma das primeiras, sai a correr para não me mijar ali mesmo e acabei todo sujo junto à porca, fiquei tão zonzo e aflito que não foi possível chegar à casa de banho. A caminho estava a porca onde cai depois de tropeçar no alguidar da porca, de caras na pocilga e só me apercebi do que me acontecera quando a porca me cheirava o cabelo com aquele nariz furado. Essa era uma história muito contada na família. A minha mãe ria perdida, dizia que ainda me via a correr com as calças a escorregar pelas pernas e o chichi a molhar os sapatos. – “Não vais fugir a correr pois não rapaz?” – Sorri, escondendo a cara e a vontade de explodir. – “Pai, diga lá o que quer.” – Forcei eu a conversa. – “Zézinho, sei que foste admitido lá por Lisboa, para seres doutor, vais estudar numa Universidade. Fico contente filho. Muito… contente.” – Os seus olhos entumecidos eram uma novidade para mim, nunca na vida, em tempo algum, o vira emocionado. Nem na morte dos próprios pais. O orgulho jorrava pelo corpo. – “Agora, daqui em diante, tudo vai ser ainda mais díficil, mas tenho a certeza que és um rapaz à altura.” – José assustava-se, o pai já dissera mais do que três palavras, já ia em três frases seguidas. Tudo muito estranho. A mãe só espreitava por detr´s do seu silêncio, enquanto os meus olhos perguntavam aos dela, que raio se ia passar em seguida. Não podia ir, ou havia alguma condição importante? – ” Eu e a tua mãe estamos cansados, velhos, usados pela vida” – Gesticulava em círculos com as mãos ruídas pelo campo. – ” Por isso, não te podemos ajudar mais com a nossa presença e sabemos bem que a vida em Lisboa tem muitos desvios, armadilhas, cruzamentos, encruzilhadas. Chegam muitas histórias aos ouvidos, em todos estes anos, são poucos os que se convenceram que a vida na cidade é boa.” – Fez silêncio, como se estivesse a contar uma história, como se aquela fossa a aula da sua vida. Parecia ter-se preparado desde que nasci. Eu estava cada vez mais enfiado em mim. – “Muitas vezes é preciso decidir: não te esqueças de te demorares a pensar, de veres quais as hipóteses, que vantagens e desvantagens para cada uma, tudo isso antes de decidir. E mesmo assim filhos, vais errar muitas vezes. E isso chama-se aprender. Ergue-te sempre rapaz, amanhã é outros dia!” – Quase se levantou com a exclamação “A tua vida, a partir da daqui será sem a nossa ajuda, será mais difícil.” – O pai repetia-se. A emoção já o abraçava. – “Quando estás confuso, é porque te encontras numa encruzilhada, é tempo de parar, pensar demoradamente, etc… já disse isto não foi…” – Acenei que sim. Já me tinha enterrado no sofá, com aquela conversa não me apetecia largar aquele quintal. – “É isso que queres, é mesmo Lisboa que desejas, estudar lá, ter um canudo, não daqueles para ver o horizonte. Mas daqueles que dão mãos limpas e ordenado chorudo?” – Sorri um pouco, aproveitei para mudar a minha posição de sentado. – “Sim, pai, quero estudar em Lisboa. Sei que é caro, mas eu posso trabalhar ao mesmo tempo…” – Interrompeu-me. – “A nossa ajuda é esta, ouve com muita atenção.” – Dizia-o enquanto me apontava um dedo ameaçador. – “É apenas dinheiro, não é abundante mas espero que seja suficiente. Para o curso e para começares a tua vida, família, etc… Aproxima-te.” – Apontou para uns papéis em cima da mesa. -“Isto, é uma conta no banco que abrimos em teu nome, e da qual irás receber cem contos todos os meses, durante os próximos seis anos. A conta já tem quinhentos contos para alguma dificuldade, uma ou outra compra que precises, doença.” – Parecia que tinha parado de respirar. Estaria a despedir-me dos meus pais? Mais aprecia um ritual de viagem, de passagem a homem.” – “No fim dos seis anos já deves ter um emprego e precisas de iniciar a tua vida. Estas acções são para venderes, SÓ nessa altura. Mais uma ajuda.” – Fiquei em silência. “Pai, parece que nunca mais nos vamos ver.” – Esperei a resposta. “Filho, esta casa tem as portas sempre abertas para ti e para quem tragas contigo, não importa o que aconteça, aqui é o teu porto de abrigo. Visita-nos, nós gostamos, sobretudo a tua mãe. Já só é lágrimas por dentro por esta altura.” – E virou-se para ela. Ao mesmo tempo, a mãe, começa num chorar compulsivo que não controla. Quando a abracei, era o corpo todo de mãe que chorava. – “Quando terminares o teu curso, eu não estarei vivo.” – Interrompi-o indignado.- “O pai está ai forte e duradoiro…”- Sem esperar mais conversa. -“Por isso te deixo esta ajuda. A vida é mesmo assim.” – Terminou.